A
ideia surge
Durante
uma viagem de ano novo nós pensávamos em tudo que o novo ano poderia nos
proporcionar: dinheiro, trabalhos, romances e a conclusão do Curso de Jornalismo.
O trabalho final estava chegando e não tínhamos nem idéia do que utilizar como
tema. Durante as longas horas de viagem do litoral carioca até São João del
Rei, conversamos sobre planos e possíveis ensaios fotográficos, ainda não pensávamos
em produzir um documentário. As cruzes a beira da estrada chamaram nossa
atenção.
Seus formatos eram dos mais diferenciados,
grandes, pequenas, de ferro, madeira, com fotos, cercadas por grades ou em
pequenas capelas. Várias cruzes eram adornadas, muitas com flores plásticas,
com santos, uma infinidade de terços e algumas tinham restos de velas aos seus
pés, como se ali fosse algum lugar de peregrinação. Outro aspecto, e talvez o
mais importante, era a deterioração causada pelo tempo, a ferrugem e o apodrecimento
de madeiras e imagens de santos de gesso, que conferiam um aspecto ainda mais
sombrio e triste a estes objetos.
No
decorrer da conversa sobre um possível ensaio fotográfico e como seria feito, a
quantidade de cruzes foi aumentando. Planejamos durante horas, mas algo nos
chamou a atenção, algo básico e muito simples, aquelas cruzes foram ali
colocadas por alguém, cada cruz possui uma história de uma vida que foi
perdida. Pensamos em como contar essas histórias, e claro, que fomos ao obvio,
os próprios familiares. E daí surgiu a ideia de realizarmos o documentário.
Os primeiros passos
1º Passo- Pesquisa
Nosso primeiro
desafio foi buscar uma possível fundamentação teórica sobre a utilização das
cruzes em estradas. A busca por artigos literários que compreendessem essa
tradição foi um desafio. Existem poucos estudos a cerca do tema, mas por fim
encontramos dois livros que explicam a utilização e o surgimento dos marcos
fúnebre.
No
livro “O diabo e a terra de Santa Cruz” da autora Laura de Mello e Souza, conseguimos encontrar
explicações para o surgimento das cruzes. Segundo a autora a tradição de se
colocar cruzes próximo das estradas surgiu durante o Império Romano, com o
objetivo de castigar os inimigos com a crucificação. A usualidade da cruz mudou
nos dias atuais. Após a expansão do cristianismo, este símbolo perdeu seu
significado como instrumento de tortura, passando a representar uma vitória
sobre a vida. Tornou-se um instrumento de redenção, um elo com o divino.
No
Brasil, o costume de fixar cruzes tem suas raízes nos missionários jesuítas, os
organizadores primazes do catolicismo nesse país (SOUZA, 2000) que, aonde
chegavam, as erguiam como forma de marcar sua territorialidade.
Getúlio César autor do livro “Crendices: Suas Origens E
Classificação” traz à tona a utilização destes marcos. A cruz, como objeto à
beira de uma estrada, tanto pode passar despercebido ao transeunte, como pode
fazê-lo inferir um mapa mental acerca daquela representação, causando a
reflexão do significado daquele símbolo. De acordo com César (1975), a
colocação de cruzes nas estradas faz parte do devocionismo popular que é uma
das manifestações do que ele chama de crendices populares.
2º Passo- Pesquisa de Campo
Percorremos durante dias a rodovia BR
265, enquanto um dirigia (Thiago Morandi) outro observava (Daniel Gouvêa) os
locais onde existiam cruzes, foram dezenas. Muitas delas ficavam ocultas pela
vegetação. Quase imperceptíveis. Tanto que não foi possível quantificá-las de
forma precisa.
O máximo que a equipe conseguia percorrer
por dia era um trecho de 30 a 40 km, a cada 100, 200 e no máximo 300 metros
éramos surpreendidos com uma cruz. O processo de encontrar local seguro para
estacionar, montar equipamentos e registrar era demorado. Foram dias de
gravações e catalogação.
O plano inicial era percorrer BR 265 no
trecho compreendido entre a BR 040 (Barbacena-MG) e BR 381(Lavras-MG),
totalizando aproximadamente 180 km.
Porém só registramos a área coberta pelo 3º Pelotão da
PMMG de Meio Ambiente e Trânsito, entre Barroso e Nazareno, aproximadamente 85 km, isso facilitou no
acesso a dados estatísticos.
O susto do real
Quando estávamos com a ação planejada
para catalogar trechos além do 3ºPelotão da PMMG, entre
Barroso e Barbacena, e Nazareno e Lavras, Thiago Morandi sofreu um acidente de
carro, dentro da via urbana de São João del-Rei, causando danos consideráveis
no veículo e afastamento temporário no trabalho.
Estes trechos, por sua vez não foram
filmados, devido à dificuldade por não haver veiculo. Porém tínhamos uma
quantidade considerável de arquivos já registrados. As entrevistas com os
personagens haviam sido captados há pouco tempo. Graças às entrevistas que
fizemos com os moradores do Rio Acima, tínhamos material suficiente para uma
produção que demonstra se a periculosidade da rodovia e a fragilidade humana
perante a via.
ENTREVISTAS
3º Passo- Encontrar personagens
No primeiro dia de gravações (14/06/13),
saímos logo após o almoço, abastecemos o carro e decidimos começar a
catalogação, sentido São João del Rei -Lavras. Ainda não sabíamos bem o que nos
aguardava nos próximos quilômetros. Depois que passamos o distrito de Sebastião
da Vitória, decidimos fazer nossa primeira parada. Uma cruz nos chamou a atenção.
Era branca e feita de ferro, não aparentava estar ali há muitos anos. Estava
com muito capim ao redor, porém o nicho onde se encontrava a cruz estava limpo,
como se alguma pessoa fizesse uma frequente manutenção do local. Encontramos um
local seguro para estacionarmos, nos sentíamos eufóricos, era nossa primeira
Cruz que seria filmada. Pegamos as câmeras e atravessamos a rodovia.
Rildo Fartes Leite, este era o nome que
estava pintado na cruz, junto com uma estrela que representava seu nascimento e
uma cruz representando seu óbito. A cruz estava afixada ao solo com cimento e
aos pés havia uma imagem de Nossa Senhora. Estávamos filmando a cruz, quando um
carro estacionou bem atrás do nosso. Um homem desceu do carro, ficamos
receosos; suas primeiras palavras foram:
--- “vocês sabem de quem é aquela cruz?”.
O tom de sua voz era inquisitivo, como se
estivesse a ponto de nos xingar por filmar a cruz. Daniel disse o nome que estava na cruz e
explicou o que estávamos fazendo um documentário, justificando que era um
trabalho acadêmico. Neste momento Thiago decide perguntar o porquê da pergunta
do homem, e sua resposta nos surpreendeu:
---“Ali foi o local do acidente do meu
primo, foi ali que ele morreu”.
Pedimos autorização para gravar um
depoimento dele e ele prontamente nos atendeu. Seu nome era Marcelo Leite, motorista, assim como o primo que perdera no
acidente.
Nós preparamos a entrevista ali mesmo, na
rodovia. Ele nos contou a história de seu primo enquanto seus olhos enchiam de
lágrimas. Rildo
era caminhoneiro estava indo trabalhar em uma segunda feira; outro caminhoneiro,
vindo em sentido contrario, ultrapassou uma carreta em local proibido colidindo
de frente com o veiculo ocupado por ele. Rildo faleceu na hora.
Marcelo nos conta com os olhos cheios de
lágrimas que seu primo, que tinha 31 anos, e na época deixou um filho de quatro
meses. Ele havia se casado há pouco tempo e estava muito feliz pelo nascimento
de seu primeiro filho.
Marcelo Leite, motorista
A importância do material captado
Despedimos-nos de Marcelo e por um breve
momento ficamos felizes pela sorte de encontrarmos com ele naquele momento. Mas
logo sentimos o peso do material que havíamos captado e ficamos emocionados com
a história. No restante do percurso algo havia mudado dentro de nós, ficamos em
silêncio durante um bom tempo. O clima no carro havia mudado; um misto de
emoção e medo. Começamos a sentir medo de que algo semelhante acontece com a
gente. Durante as horas em que permanecemos no veículo aquele dia, permanecemos
em silêncio gravando as outras cruzes.
Neste momento descobrimos a seriedade e
importancia de nosso trabalho. Nosso documentário não falava apenas de cruzes à
beira da estrada. Nós percebemos ao entrevistar Marcelo que o material que
produzíamos, retratava a vida e a morte, a fragilidade do ser humano, dos
perigos inerentes que todos estão sujeitos ao utilizar as estradas
brasileiras.
Mais gravações
No segundo dia de gravação, ainda em
junho de 2013, fomos a outros pontos da rodovia que havíamos catalogado. Todos
os locais sempre nos espantavam. Em diversos pontos da estrada havia marcas de
acidentes recentes. Optamos por deixar de filmar várias cruzes, certos pontos
onde as cruzes estavam afixadas não eram seguros, nem para parar, tampouco
transitar a pé. Como a exemplo, uma curva fechada próximo ao trevo da cidade de
Nazareno. Havia diversas marcas de pneus e riscos no asfalto. Todas as marcas
seguiam para uma ribanceira e no alto dela havia uma singela cruz branca,
depositada na ponta da escarpa. Não havia acostamento e o intenso tráfego de
caminhões no local nos assustou, o depoimento de Marcelo ainda estava muito
recente em nossas mentes.
Filmamos diversas cruzes depois da cidade
de Itutinga. Nosso objetivo naquele dia era ir até Lavras. Mas duas cruzes
prenderam nossa atenção. A primeira uma cruz de metal corroída pelo tempo, onde
nem o nome nem a data do acidente podiam ser identificados, mas no chamou a
atenção pela cerca ao redor do objeto. A cruz era cercada por uma estrutura
feita em aço e pintada de branco, como se tentasse de alguma forma proteger
aquele marco. Bem ali, algum acidente fatal a levou a morte uma pessoa e tudo
que restou a família foi proteger a cruz que a representa.
O segundo local em que paramos foi
próximo a lavras onde duas cruzes brancas feitas em ferro, revelavam que ali
também aconteceu um acidente há pouco tempo. Ainda era possível observar ali
destroços do veículo. Na pequena ribanceira as cruzes de Lourdes de Oliveira
Silva e Walkiria Paula Salas, estavam enfeitadas aos pés com lindas flores
plásticas e um pequeno e singelo ramo de rosas vermelhas plásticas entre elas.
Ao fim do barranco era fácil encontrar partes de algum veículo e muito vidro
quebrado. A luz do dia já se encerrava, optamos então fazer ali as últimas
imagens do dia, aproveitando o por do sol e a beleza daqueles objetos. No
retorno para São João del-Rei observamos diversas imprudências de veículos,
principalmente ultrapassagens em locais proibidos, estava escuro e não
conseguimos fazer imagens de tais atos.
No terceiro dia de filmagem, em meados de
julho de 2013, buscamos, além das cruzes filmar veículos que se arriscavam
cortando caminhões em curvas, em pontes e outros locais proibidos. Filmamos
várias cruzes e diversos comportamentos arriscados. Mas sentimos que faltava algo.
O depoimento impactante de Marcelo destoava do restante do material. Concluímos
que nosso documentário precisava de algo; precisava de mais vozes. Enquanto rodávamos
pela rodovia, pensávamos em possíveis entrevistados, talvez um agente do SAMU
ou algum Policial Militar. Quando passamos pelo bairro Rio Acima (São João
del-Rei), e nos lembramos que ali existe um grande histórico de acidentes,
tanto envolvendo moradores do local quanto outras pessoas.
Procuramos algum morador local para
intermediar as entrevistas, entramos em contato com a Líder comunitária do
lugar, conhecida como Raimunda, na sua ausência quem nos deu suporte foi
Natália Couto, sua filha, que se disponibilizou há conversar com moradores do
bairro. Agendamos
as entrevistas por telefone, dedicamos um dia exclusivamente para conversar com
os moradores e entender as histórias que os rodeavam.
Rio Acima
O Bairro Rio Acima é cortado pela BR 265
bem no ponto onde se encontra uma ponte sobre o córrego de mesmo nome. São
poucas residências, uma creche e a igreja de Santa Clara. No local não existe
supermercado, posto de saúde, farmácia, posto de gasolina e nem escola. São
apenas casas e uma central de tratamento de água. Isso obriga os moradores a
recorrer outros bairros para trabalhar, estudar ou comprar qualquer coisa. O
problema é que a única maneira de chegar ou sair, é pela rodovia. Não existe
outra maneira. O acostamento da rodovia é repleto de capim e não existe local
seguro para se transitar, tampouco atravessar. Além da velocidade com que os
veículos transitam pelo local, a ponte que corta o bairro, está localizada em
uma curva.
Os problemas enfrentados pelos moradores
repercutem na quantidade de acidentes e atropelamentos envolvendo os moradores.
A maioria dos habitantes do local já perdeu um parente ou amigo vítima de
acidente. Natália nos guia a primeira residência, uma casa humilde e pequena,
onde mora a senhora Maria Trindade do
Nascimento.
Maria Trindade do Nascimento, diarista
Ela nos acolhe de bom grado nos
convidando a entrar. Dona Maria é diarista, teve quatro filhos, mas uma
tragédia levou a vida de seu segundo filho, na época com apenas cinco anos. Ao
tentar atravessar a rodovia ele foi atropelado por um carro. Maria nos conta
que mesmo após os mais de vinte anos do acidente não há o que supere a dor da
perda.
Saímos de sua residência e
percorremos uma distância de 20 metros na mesma rua, e entramos na residência
de Ana Lúcia da Silva. Enquanto nos
preparávamos para filmar, Ana Lúcia busca algumas fotos de seu marido. Ele
faleceu a mais de quinze anos deixando ela sozinha com os filhos. O acidente
foi na ponte que corta o bairro. Ele ocupava um veículo que colidiu de frente
com outro. O motorista do outro veículo dirigia embriagado.
Ana Lúcia da Silva, aposentada
Quando Ana recebeu a notícia do
acidente ela correu até o local e encontrou o marido ainda vivo, mas ferido
gravemente. Enquanto nos contava sobre os últimos momentos de seu marido, e de
seu sofrimento, ela manteve o tempo todo, as fotos de seu esposo suspensas em
seus braços.
Após sairmos da residência de Ana
Lúcia, já pensávamos em ir embora, quando Natália nos disse que ainda havia uma
família que deveríamos conhecer.
Andamos alguns metros e atravessamos a
rodovia. Natália chamou no portão e o Senhor Antônio de Paiva nos atendeu. Explicamos nosso objetivo de gravar
um documentário e perguntamos se podíamos gravar com ele e sua esposa. Natália
havia nos dito que o casal (Antônio e Cleusa) havia perdido um filho em um
acidente na rodovia. Enquanto começamos a preparar o equipamento conversamos um
pouco com eles para sabermos mais sobre sua história e seu filho. Para nosso
espanto eles nos revelam que não perderam somente o filho naquela estrada, mas sim
o pai de Cleusa de Paiva e também
dois irmãos.
No momento ficamos estarrecidos e
perguntamos sobre os acidentes. Eles não entraram em detalhes sobre os
acidentes apenas narraram as circunstâncias que vitimaram os familiares. O pai
em acidente enquanto dirigia; o filho atropelado por uma Kombi enquanto
atravessava o asfalto; os outros dois irmãos sofreram acidentes em locais e
dias distintos. Cleusa no conta que o filho deixou uma garotinha de um ano
quando faleceu, a pequena garotinha fica sentada ao seu lado, durante as
gravações segurando a foto do pai.
Antônio e Cleusa nos contam por meia hora
sobre os perigos daquele trecho, sobre as imprudências dos motoristas e as possíveis
formas de diminuir o alto índice de acidentes no local. Há algumas semanas
antes da nossa visita, eles nos contam que organizaram um protesto no bairro. O
pedido era que os órgãos públicos instalassem no local quebra-molas ou algum
radar, como forma de forçar a redução da velocidade dos veículos que por ali
trafegam.
Antônio trabalha na sub estação de
tratamento do DAMAE[1]
localizada no outro lado da rodovia, nos confessa que teme pela própria
segurança por atravessar diariamente a estrada. Eles nos contam que
recentemente a filha mais nova do casal ao descer de uma van escolar escapou de
ser atropelada por pouco.
Após a entrevista nos dirigimos com
Antônio para o trecho onde ele perdeu o sogro e o filho. No local constamos que
a velocidade dos veículos que passavam por ali era muito superior aos 40 km/h
instruídos nas placas de sinalização. Fizemos diversas imagens do local e
registramos imprudência e perigos.
O roteiro final do documentário “A
Dor Fica” foi construído com o decorrer das próprias gravações e analise das
referências teóricas que eram inseridas nas abordagens que eram dadas durante a
captação do material.
Sergio Puccini, relata que esse
processo acontece em diversas produções.
“De
posse de todo material captado, será apenas na sala de montagem que o diretor,
assessorado por seu montador, terá total controle do universo de representação
do filme, O percurso é marcado pela perspectiva daquilo que está por vir, a
captura de um real que gradualmente vai sendo moldado até se transformar em
filme. Estamos falando da construção de um discurso sedimentado em ocorrências
do real” (Puccini, 2009, Pag.16)
A linha de montagem do
documentário, assim como sua construção literária para que seja compreensível e
construído a partir de princípios de compreensão ocidental, com começo, meio e
fim, realizada após ter todo material captado, podendo ou não sofrer
modificações e necessitando de novas gravações.
E foi assim a
montagem do documentário, a partir dos relatos dos personagens construímos a
base da história que queríamos contar, buscando dar pequenas pausas para
dramatizar e dar espaço para percepção do espectador. Esse processo foi
demorado e longo, pois tínhamos pelo menos 1h30min de depoimentos para reduzir
em menos de 10min.
O
produto final era um curta documental e decidimos em mantê-lo com no máximo 10
min de duração. Após a construção das histórias de “A Dor Fica” era hora de
cobrir alguns depoimentos com imagens que ilustrassem os sentimentos daquelas
histórias. As imagens conversam entre a voz do personagem e a trilha sonora do
filme.
Esse
foi outro desafio enfrentado pela equipe, decidimos não utilizar músicas
comerciais e sim com licença Creative Commons[2],
encontramos músicas que comunicavam com as imagens e criamos a montagem dessa
forma, criando interação entre imagem e áudio.
[1] Departamento de Agua e Esgoto de
São João del-Rei
[2] Somos uma organização sem fins
lucrativos, que permite o compartilhamento e o uso da criatividade e do
conhecimento através de licenças jurídicas gratuitas. http://creativecommons.org.br/
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